O que a segurança da Fórmula 1 aprendeu com o fim de semana que matou Ayrton Senna, a thread
Com um saldo de cinco acidentes, catorze feridos e duas vítimas fatais, o Grande Prêmio de San Marino de 1994 gravou seu nome em sangue na história da Fórmula 1.
Com as falhas escancaradas, a FIA entrou em um longo processo de melhoria da categoria. Deixa eu te contar sobre ele.
Sequência de tragédias
A avalanche de acidentes começou já na sexta, quando o brasileiro Rubinho Barrichello acabou acelerando demais em uma das curvas do circuito de Imola.
Rubinho passou a zebra, decolou e, indo parar em cima da barreira de pneus, capotou.
VÍDEO FORTE
O impacto foi de 95G, e o piloto perdeu a consciência imediatamente. Na verdade, Rubinho esteve morto por seis minutos inteiros.
Teve amnésia, uma luxação na costela e um nariz quebrado. “Tá assustado, mas tá bem”, foi como Senna - que invadiu o centro médico - descreveu.
No sábado, durante o classificatório, a asa dianteira da Simtek de Roland Ratzenberger simplesmente se desprendeu do carro, caindo sob os pneus.
Ao “atropelar” a peça, Roland não teve o que fazer: bateu no muro da curva Villeneuve, sofrendo um impacto de 500G.
IMAGEM FORTE
O pneu do carro penetrou a célula de sobrevivência, acertando o piloto de 33 anos que, ainda pelo impacto, teve uma fratura basal no crânio - ou seja, quebrou bem na nuca - e uma aorta rompida.
Agora a gente precisa fazer uma pausa necessária.
A legislação italiana exige que, caso um atleta morra durante um evento esportivo, o evento deve ser cancelado e o local interditado para perícia.
Mesmo depois de um impacto de 500G (sim, estou enfatizando), a organização de prova alegou que Roland saiu vivo do circuito.
Até porque cancelar um Grande Prêmio de Fórmula 1 seria um absurdo de proporções homéricas. Algo assim era incogitável.
Para todos os fins, então, Roland Ratzenberger saiu do Autódromo Enzo e Dino Ferrari com pulso.
Comemorem: no domingo, teremos corrida.
Na largada, a Benetton de J. J. Letho não largou. Ficou lá, parada no grid - e Pedro Lamy, da Lotus, não o viu. Acertou sua traseira em cheio, e partes da carenagem e pneus voaram sobre o público. Nove pessoas ficaram feridas.
Entra o Safety Car.
Segundo a National Geographic (em uma teoria ainda não comprovada), os pneus da Williams de Ayrton Senna perderam pressão, deixando o carro mais próximo ao solo - e mais difícil de guiar.
O choque do assoalho com o asfalto causou o rompimento da barra de direção.
Ayrton virou passageiro do próprio carro. No Brasil, a voz de Galvão Bueno eternizava a tragédia: Senna bateu forte.
O muro da Tamburello foi impiedoso, tanto com ele - que sofreu a mesma fratura basal de Roland e teve uma artéria temporal rompida -, quanto com o carro.
Com o impacto, a barra de suspensão se soltou e virou uma espécie de lança que perfurou o crânio do piloto.
“Ele estava sereno. Nós o tiramos do cockpit e o pusemos no chão”, contou Sid Watkins. “Embora eu seja totalmente agnóstico, eu senti sua alma partir nesse momento.”
Assim como Roland, no entanto, Ayrton Senna não foi declarado morto na pista.
O show de horrores deveria seguir, óbvio.
E assim foi.
A dez voltas do fim, outro acidente - agora no pit-lane.
Um pneu de Michele Alboreto se soltou e acertou quatro mecânicos - três da Ferrari, um da Lotus - que, com ferimentos sérios, foram levados ao hospital.
Mas a corrida foi até o final. A bandeirada foi dada. Estava terminado o desastroso Grande Prêmio de San Marino de 1994.
Mas e aí, o que mudou?
A FIA reconheceu que a Fórmula 1 não poderia continuar daquele jeito. Começou, então, a maior onda de atualizações de segurança que já se teve notícia.
O resultado foi expressivo: a década de 2000 foi a primeira da história da F1 sem acidentes fatais.
Fortalecendo a célula de sobrevivência
Sabe aquela máxima de que “se o carro não deforma, quem deforma é você”? Pois é.
Tanto Barrichello quanto Ratzenberger tiveram seus ferimentos causados pelo impacto que receberam nos próprios corpos - 95G e 500G.
Esse erro crasso foi corrigido por um par de medidas na estrutura do carro.
Agora, a carenagem deforma absurdamente em qualquer impacto maior - e a estrutura de fibra de carbono e alumínio da célula de sobrevivência, em compensação, é impenetrável.
Dá pra colocar o acidente do polonês Robert Kubica, no GP do Canadá de 2007, como um dos primeiros grandes exemplos da eficiência dessa medida.
O carro ficou destruído por completo. O piloto? Saiu de uma batida de 75G com uma leve concussão e nada mais.
Prazer, meu nome é HANS
Tudo bem, a melhoria da célula de sobrevivência (e o halo, inventado posteriormente, claro) teria poupado o Rubinho de boa parte de seus ferimentos. Mas teria salvado a vida de Roland?
Sozinha, provavelmente não.
500G é uma panca forte demais.
Então vamos além.
A causa da morte foi, segundo a autópsia, um traumatismo craniano no osso occipital gerada pela desaceleração brusca. Traduzindo, o pescoço dele foi pra frente com tanta força que quebrou o osso do crânio que fica perto da nuca.
E já existia solução pra isso.
Te apresento o HANS - que a Fórmula Indy já usava. O Head and Neck Support (suporte de pescoço e cabeça) chegou à F1 em 2003 e é essa “cadeirinha” que os pilotos usam no pescoço.
Feita de polímero de fibra de carbono reforçado, ela diminui bastante (mesmo) o tranco no pescoço.
Agora, sim. Com a estrutura do carro reformulada e a implementação do HANS, é muito provável que Roland Ratzenberger tivesse sobrevivido ao seu acidente.
Levando em consideração que Ayrton Senna teve o mesmo tipo de fratura, a peça também o teria salvado.
Mudanças na Suspensão
O que matou Ayrton foi a fratura basal, claro, mas a suspensão solta também teve uma grande colaboração. Se houvesse o HANS, ele provavelmente não teria morrido - mas a suspensão teria deixado sequelas consideráveis.
Por isso, desde 1997, sua estrutura foi mudada. Ela passou a ser projetada para evitar a cabeça do piloto a todo custo em casos de acidente, e precisa ter uma articulação de 120º com o bico e a asa para ajudar a segurar os pneus.
Mas ainda houve uma outra falha: o capacete.
Melhorias no capacete
Tudo bem, vou pedir licença para ir um pouquinho adiante no tempo: vamos para 2009, quando uma mola do carro de Rubinho acertou a testa de Felipe Massa.
Assim como rolou com Senna, o capacete - que deveria proteger a cabeça do piloto - foi perfurado.
Massa sobreviveu e acendeu um sinal de alerta: o capacete precisa melhorar.
Por isso, uma faixa de Kevlar foi adicionada logo acima da viseira e, posteriormente, o material foi incorporado em todo o capacete.
Então, sim: o capacete atual teria ajudado a salvar Ayrton Senna.
O muro, a curva e o circuito
Mesmo com tudo isso, a pancada de Senna ainda foi bem forte. As medidas que listamos até agora evitariam duas das três lesões que ele teve na cabeça. Falta, agora, a terceira.
E acredite, essa não foi culpa do carro.
O muro no qual ele se chocou - ao final da Tamburello, atenção, uma curva de alta velocidade - era de concreto. Não absorve nada do impacto, não amortece nada. Todo o choque vai pro carro.
Hoje, os muros de concreto só são utilizados em retas. Nas curvas, só de pneus ou Tec-Pro.
E dava pra ficar um mundo de tempo falando dos pilotos que já foram salvos por essas barreiras, mas vamos falar de Carlos Sainz em Sochi, 2015.
A batida foi de 46G e o piloto já estava bem, tranquilo, competindo no dia seguinte. Que evolução, né?
E falando em curva, a morte do Ayrton fomentou a investigação e análise detalhada de 27 curvas que foram classificadas como perigosas ao redor de todo o mundo.
Elas todas foram refeitas. Ao final de 1994, eram 15 - em 97, duas. A própria Tamburello não existe, virou uma chicane.
Infelizmente - como acontece repetidas vezes na história da Fórmula 1 -, duas vidas precisaram ser ceifadas em Imola-94 para que a categoria se tornasse mais segura para as próximas gerações.
Mas me conforta saber que as mortes deles não foram em vão. Que alguém aprendeu algo.
Nesse primeiro de maio, se lembre de Ayrton Senna e Roland Ratzenberger, os dois pilotos que deram a vida para que tantas outras pudessem ser salvas.
E não se engane: esses dois não estão mortos. Enquanto nos lembrarmos deles, eles estarão somente uma volta à nossa frente.
Essa foi a última thread de um especial sobre os 30 anos sem Ayrton Senna que eu amei escrever, com diversos relatos pra conhecer melhor não a morte, mas a vida linda que ele teve.
Se você quiser contribuir com esse tipo de conteúdo, a chave pix é lauraperandim@gmail.com 🩷